terça-feira, 17 de maio de 2011

UMA MÃE, UM FILHO E DEUS

A esperança de que aquele paciente portador do vírus da AIDS se recuperasse era bem pequena. Geralmente, os pacientes que se encontram nesse estágio da doença apresentam grandes variações em seu estado de saúde. Estão bem num dia, e no dia seguinte a situação se agrava; logo em seguida eles melhoram novamente para depois apresentarem outra piora. O problema é que a cada piora, a situação do paciente se agrava e fica cada vez mais difícil a recuperação. Essa era a situação de José. Ele estava enfrentando uma de suas piores crises. Mais tarde, como veremos, ele conseguiu se recuperar, mas naquele momento a situação era gravíssima.
Assim que fiquei sabendo do agravamento da doença de José, fui até o quarto para conversar com ele e com sua mãe, Dona Maria, que sempre estava ao lado dele. Minha intenção era prepará-los para o que viria depois da crise, e isso tanto poderia ser morte como recuperação.
Procurei trazer a mãe do paciente para um lugar mais sossegado para podermos conversar, e lá perguntei se ela estava precisando de alguma orientação. Imediatamente ela respondeu:
— Não quero saber dessa conversa sobre Deus. Fiz um acordo com Ele: se Ele não curar meu filho, não quero mais saber de Deus. Se Ele não pode me dar o que mais quero, para que eu preciso de Deus?
Se alguém perde um dos pais, é chamado de órfão; se perde o cônjuge, é chamado de viúvo ou viúva. Mas não existe palavra para designar alguém que perde um filho ou uma filha.
Embora reconhecendo o fato de que aquela mãe estava na iminência de sofrer a que talvez seja a pior dor emocional que uma pessoa é capaz de suportar, procurei argumentar que a imagem que ela tinha de Deus era bastante deturpada. Tentei mostrar a ela que sua concepção de Deus estava longe de ser real, isto é, ela queria um deus de acordo com sua conveniência, um deus que fosse uma mistura de Papai Noel e Gênio da Lâmpada, pronto para satisfazer os seus desejos. Ao ouvir isso, ela reagiu com palavras duras, dizendo:
— Eu o proíbo de falar sobre Deus comigo ou com meu filho. Será um prazer continuar recebendo suas visitas, mas não para falar de Deus. Se você insistir, vou pedir à direção do hospital para impedir suas visitas.
Não obedeci ao seu pedido, ou melhor, obedeci em parte. José se recuperou admiravelmente. Não toquei mais no assunto com Dona Maria, mas todas as vezes que eu ficava a sós com seu filho, procurava lhe falar de Deus e do seu maravilhoso plano de amor. A reação dele era de ceticismo. Até que certo dia um missionário americano foi até o Hospital das Clínicas para conhecer o nosso trabalho, e algo incrível aconteceu... mas antes considere esse versículo:
Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina (2 Tm 4.2).
Esse missionário norte-americano estava no Brasil para participar de uma conferência missionária, e demonstrou interesse em conhecer nosso trabalho no Hospital das Clínicas. Enquanto caminhávamos pelos corredores do hospital, lembrei-me que José, o paciente com AIDS era professor de inglês. Fomos imediatamente ao seu quarto, e ali chegando, expliquei ao missionário que poderia falar com ele em inglês. Os dois conversaram animadamente por longo tempo, observados por Dona Maria, que apesar de não entender uma palavra do que falavam, estava feliz e orgulhosa por ver o filho conversando com um americano. O que ela não sabia é que o americano estava falando de Jesus para ele. No fim da conversa, o missionário fez menção de orar, mas tive que impedi-lo, senão a Dona Maria não iria gostar. Depois que saímos do quarto, expliquei o que estava acontecendo e ele entendeu por que eu havia agido daquela forma.
Não sei dizer se José se converteu. O missionário acredita que sim, conforme me confidenciou mais tarde. Mas, uma coisa é certa: José teve a oportunidade de ouvir a mensagem do Evangelho de forma clara e objetiva. Essa é a nossa tarefa. O resto é com o Senhor.
Mas, a história ainda não terminou.
Depois de algum tempo, José apresentou uma boa melhora e recebeu alta do hospital. Não tive mais notícias dele até que certo dia, casualmente, soube através de um outro paciente que José havia falecido.
Tentei entrar em contato com a mãe dele, mas só consegui falar com ela seis meses depois da morte do filho. Ela ainda estava muito abalada com a sua grande perda, o que é compreensível, pois havia vivido os últimos anos em função do José. Dona Maria estava cumprindo o terrível "acordo" que havia feito com Deus: como Ele não havia curado seu filho, ela não queria mais nada com Deus.
Lembro-me de algumas coisas que ela disse quando nos encontramos:
"Não perdôo Deus pelo que Ele fez".
"Prefiro acreditar que Deus não existe a pensar que Ele fez isso comigo".
"Se Ele quiser me mandar para o inferno, pode mandar; sei bem o que é inferno, pois já vivo nele aqui mesmo".
Quanta amargura havia no coração daquela mãe! Quanta falta de sabedoria! Dona Maria tinha transformado o filho no seu "deus". Para ela, ele só tinha qualidades. Ela chegou a afirmar que o filho havia contraído a doença porque amava muito as pessoas. Pelo que conheci da vida do José, pude perceber que essa era uma forma equivocada de disfarçar seu estilo de vida promíscuo. Mas a mãe só conseguia enxergar o que queria ver!!
Com a morte do filho, uma parte dela também morreu. Mais do que isso: para ela, Deus também havia morrido.
Que diferença das palavras proferidas por Jó em meio ao sofrimento:
"Porque eu sei que o meu Redentor vive" (Jó 19.25).
Às vezes, chego a pensar que Deus evangelizou o filho de Dona Maria bem na sua frente, mas através de uma língua desconhecida para aquela empedernida mulher porque ela já tinha tido a oportunidade de ouvir o Evangelho, mas o rejeitou.
Preste atenção ao que a Bíblia diz: [...] o coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram com os seus ouvidos e fecharam os seus olhos; para não suceder que vejam com os olhos, ouçam com os ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam por mim curados (Mateus 13.15).
Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim curados (João 12.40).
E você, o que pensa sobre isso?

DEZ ANOS DEPOIS
Semana passada tive uma dessas experiências que só Deus mesmo para nos proporcionar. Quando já me encaminhava para ir embora, passando em frente à Capela do HC-UNICAMP, avisto a Dona Maria, ela mesmo, a mãe do José. De pijama do hospital, ao me ver ela se mostrou extremamente feliz pelo encontro. Ela fez uma cirurgia no coração, acabara de receber os papéis de alta e ia para o quarto se trocar para ir embora.
Como sou péssimo para guardar datas, foi ela que me situou no tempo: já se passaram 10 anos desde a época em que convivemos, convivência essa que foi interrompida pela morte do seu filho.
Conversamos um pouco e eu não deixei escapar a oportunidade de lhe perguntar: “A senhora se reconciliou com Deus?” e pode dar glórias a Deus pois a sua resposta foi um emocionado SIM.

2 comentários:

  1. Eu acredito que faltou fé para essa mãe. Se ela tivesse fé do tamanho da semente de mostarda, o filho dela não teria morrido.
    A PAZ.
    Ezequiel da Silva.

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  2. Meu caro amigo,

    Mais uma vez os exemplos reais que você coloca em suas reflexões são impressionantes...
    Fico imaginando que espero não precisar passar por tudo que D. Maria passou para ficar bem com Deus.
    Acho que todos temos uma D. Mariazinha (com todo o respeito) dentro de nós que se revolta com Deus quando as coisas não andam de acordo com nossos desejos... vemos Deus como aquela figura infantil, uma espécie de mistura de Papai Noel e gênio da lâmpada (talvez até com um pouquinho de coelhinho da Páscoa), que você mesmo usa como exemplo de vez em quando.
    Nessas horas a mansidão e resignação tem que estar presentes... e o apoio da comunidade é essencial.
    Agora, acharmos que a falta de fé da mãe colaborou para a morte do filho é de uma crueldade que não tem mais tamanho...
    Imagina a culpa e o sofrimento de uma mãe (e ser mãe e criar um filho já traz uma boa dose natural de culpa) ao cogitar que alguma coisa feita por ela (ou não feita) colaborou para a morte do filho...
    É impressionante como as pessoas podem ser insensíveis e desumanas a esse ponto.
    Que Deus tenha piedade de nós.


    Paz, caro Xyko

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