Recentemente lançado no Brasil também em DVD, Avatar é um belo filme, ainda mais para aqueles que apreciam ficção científica e ação. Para além dos espetaculares efeitos especiais, não podemos deixar de reconhecer que o escritor e diretor James Cameron sabe como fazer filmes sobre aquilo que as pessoas querem ver. Ele assina os dois maiores campeões de bilheteria do cinema, o próprio Avatar e Titanic. A grande aceitação pela sociedade faz do filme um bom indicador das expectativas e dos rumos que nossa cultura está tomando. Por outro lado, ele acaba também exercendo um efeito reforçador sobre essas expectativas.
Certamente as muitas interpretações possíveis do conteúdo do filme fogem ao controle de Cameron e isso mostra sua grande capacidade de captar os anseios da sociedade (principalmente a estadunidense) e expressá-los artisticamente.
Cabe, portanto, uma reflexão mais profunda sobre a mensagem final do filme: os humanos são os vilões, ambiciosos (o empresário da mineradora), violentos, arrogantes (o coronel), autoritários e pragmáticos (a cientista chefe do projeto Avatar). O próprio herói do filme, o ex-fuzileiro paraplégico Jake Sullivan, em busca de dinheiro para a cura da sua deficiência, é um frio mercenário até se sensibilizar com a cultura Na’vi e se tornar o messias encarnado na pele azulada de um Avatar. Com a ajuda da deusa Eywa os humanos são vencidos e expulsos de Pandora. O modelo violento e arrogante da cultura humana está superado, o enxame de poderosos helicópteros, no mais glorioso estilo Apocalipse Now, está definitivamente derrotado.
Os humanos se vão humilhados, como os males da mítica caixa, mas fica uma esperança para os vencedores: a ciência pode ajudar a transpor o humano e suas deficiências físicas, morais e até espirituais. Tornar-se Na’vi é a mensagem final, com vislumbres de superação inclusive da morte. Para os gregos antigos a condição humana se reduzia à mortalidade, por isso, ao contrário dos deuses, os humanos eram denominados simplesmente mortais.
“Nos próximos 50 anos a ciência permitirá aos humanos transcender suas limitações, nossos corpos e cérebro se fundirão ao poderio computacional, usaremos a tecnologia para redesenhar a nós e nossos filhos em diversas formas de pós-humanidade” (More M. On Becoming Posthuman, 1994). O trans-humanismo prega a interferência radical da ciência para aumentar nosso tempo de vida e até alcançar o ideal pós-humano da imortalidade.
O herói do filme se desilude de sua humanidade e passa a lutar pelos valores dos Na’vi. Busca algo que existe apenas em Pandora: o precioso metal unobtainium (inobtível) com propriedades extraordinárias e que não pode ser obtido no mundo real. Ele tenta salvar a dra. Augustine mas não é mais possível. Como prêmio de consolação ela acaba sendo incorporada à Árvore das Almas e, ao final do filme, é feita a transferência definitiva da “alma” de Jake ao seu Avatar.
Há quem veja o pós-humanismo como uma postura radical demais, uma fantasia delirante com aspirações de pseudo-religião, há também quem considere essas aspirações legítimas, elevando a ciência ao status divino e reduzindo o ser humano a uma espécie de software que pode ser transferido para uma máquina ou um Avatar.
Essas posições, concordemos ou não, merecem todo respeito, mas cabe lembrar que existem pessoas motivadas pelos mais diversos interesses, dispostas a fazer experiências extremas e colocar em risco aquilo que nos torna verdadeiramente humanos. A análise preliminar do tema traz, pelo menos, um alerta de prudência sobre o assunto.
Para além dessa distopia pós-humanista de imortalidade, implícita no final do filme, resta uma esperança (última referência ao mito de Pandora): é esse sonho de imortalidade, essa aspiração de sermos deuses que, lá no fundo, sempre nos fez e nos fará cada vez mais humanos...
Venâncio Pereira Dantas Filho e Flávio César de Sá são médicos e membros do Módulo de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
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