sábado, 31 de outubro de 2009

A MARCA DA INTOLERÂNCIA (texto de J. Villar)

Esse texto, muito bom por sinal, foi postado em atenção aos meus alunos da Escola Bíblica Dominical da IBCU (Xyko Motta).

A MARCA DA INTOLERÂNCIA
“Examinei com cuidado o significado de um herege e não consigo fazê-lo significar mais que o seguinte: um herege é um homem de quem discordamos”. Essa afirmação, em tom irônico, data do século 16 e se deve a um protesto contra a intolerância que a Reforma Protestante começava a assumir na Genebra de Calvino. Um movimento que começou brandindo pelo direito à “liberdade de consciência”, e que não deveria “triunfar pelo fogo, mas pelos escritos” (Lutero), estava adotando métodos tão intolerantes quanto os de seus perseguidores. O próprio Lutero, como se sabe, concordou que anabatistas e membros de outros movimentos protestantes mais extremistas fossem condenados à morte pela autoridade civil.
O que aqui se escreve não é para infamar a memória daqueles reformadores ilustres. Eram filhos de seu tempo e não podem ser julgados pelos critérios de quem, no presente, pode observar seus erros com quase cinco séculos de vantagem. A necessidade de preservar verdades fundamentais num ambiente terrivelmente hostil, se não justifica, ao menos explica as ações agressivas que adotaram na ânsia de preservar o sistema que defendiam.
O que se pretende mostrar é que a intolerância, esse sentimento que nos leva a desprezar e nos afastar do diferente, e estabelecer a “nossa verdade” a fórceps, pode assaltar inclusive os mais sinceros e honestos homens de Deus. Se homens com aquela envergadura moral, evidentemente chamados por Deus para a realização de um propósito grandioso, incorreram em intolerância brutal, não é de imaginar que corremos o mesmo risco?
E é bom lembrar que quando somos intolerantes raramente o assumimos, mas sempre garantimos que assim agimos pelos mais nobres e espirituais motivos. E qual motivo poderia ser mais nobre e espiritual do que a defesa da verdade da Palavra de Deus? O problema é que escudado nessa boa razão – e é isso que nos mostra o teatro da história – podemos, em vez de defender a causa santa, dar vazão à nossa atávica intransigência. “Sou uma pessoa relativamente fácil de conviver, só não suporto que discordem de mim”, diz o “Deus” brasileiro do filme de Cacá Diegues, vivido por Antônio Fagundes. Talvez os líderes das igrejas no país devessem se perguntar aonde o cineasta foi buscar esse paradigma distorcido para retratar a Deus.
Não faltará quem diga que a intransigência é necessária na defesa da verdade, afinal se o evangelho está em jogo devemos ser intransigentes. Isso está correto, mas devemos nos lembrar que somente aquilo que é essencial ao evangelho é que requer uma defesa radical. Vejamos alguns exemplos. Alguém pode usar, hoje, o título de apóstolo? O batismo deve ser aplicado apenas a quem entende o ato ou deve se estender às crianças? As línguas estranhas constituem um sinal de batismo do Espírito Santo?
Sabemos que haverá diferentes respostas para todas essas perguntas no meio evangélico. Mas concordamos que Jesus é o Senhor, que a justificação dos pecados somente ocorre pela graça de Deus, por meio da fé, com a autoridade suprema das Escrituras como regra de fé e prática, e em todas as afirmações do credo apostólico. Isso nos revela que aquelas verdades, a respeito das quais divergimos, não são essenciais à nossa unidade, pois podemos comungar uns com os outros apesar dessas diferenças, enquanto que estas outras são inegociáveis, e não poderá haver unidade com aqueles que não a aceitam.
Assim, a nossa unidade deve se dar em torno do que tem sido considerado essencial no correr dos séculos da história da igreja e devemos aprender a exercitar a tolerância naqueles outros assuntos, a respeito dos quais pensamos de modo diferente. Essa tônica foi bem resumida num provérbio antigo, produzido no calor da Reforma, que preconiza o seguinte: “Na verdade, unidade; nas questões duvidosas, liberdade; e em todas as coisas, caridade”. A frase, segundo John Stott, se deve a Petrus Meuderlin, pensador luterano do século 17, que lamentava, desde então, a falta de unidade do movimento que se desligara da igreja romana. “Se nós pelo menos observássemos unidade nos essenciais, liberdade nos não-essenciais, caridade em todas as coisas, as nossas relações estariam na melhor situação possível”. Corremos, todavia, o risco de nos esquecer do essencial, de guerrearmos pelo não-essencial, e tudo isso sem a menor caridade.
• João Heliofar de Jesus Villar, 45, é procurador regional da República da 4ª Região (no Rio Grande do Sul) e cristão evangélico.

Um comentário:

  1. Caríssimo Xyko, parabéns pelo excelente e oportuno texto de J. Villar.
    Sem dúvidas um dos maiores desafios do ser humano é a convivência com o diferente. Ficamos a vida inteira nos esforçando para criar uma identidade (lat. de idem, igual, tal), ou seja algo que buscamos ou criamos para sermos iguais. Ora, isso nós criamos para ficarmos tranquilos, pois é algo que conhecemos cada vez mais e vamos nos acomodando. Aí aquilo que é diferente nos incomoda, nos desaloja, nos amedronta... para algumas mentalidades imperialistas os diferentes devem ser destruídos, pois a convivência com eles é insuportável.
    Pois é, o exercício da tolerância deve ser voltado não somente para a diferença ideológica ou de crença, mas para todos os tipos de diferença que possam existir... não é fácil.

    Muita Paz,

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